.
Nota Introdutória
.
«Remar contra a maré é difícil mas enrijece»
(GOËTHE)
.

Este não é um livro de poesia, mas um manifesto de quem não subscreve o mundo em que vive e contra a geração que, em Maio de 68, escrevia nas paredes de Paris «a imaginação ao poder» e que hoje, no poder, sem imaginação, vai corroendo e consumindo um a um todos os valores que herdámos dos nossos pais e dos nossos avós, a nossa cultura, a nossa pátria e a nossa alma, com a mesma persistência com que o eucalipto desertifica o solo arável.
.
Não sou poeta, nem escritor.
.
Sou um alfaiate de província que, sem freguesia, teima em coser e em resistir com as suas linhas à tirania arrogante e insolente da Alta Costura do pensamento.
A Raúl Cóias,
poeta e alentejano a tempo e inteiro


Só na Poesia, a palavra é
verdadeiramente senhora do seu destino
PREFÁCIO
.
“Ser homem é ser livre. Tornarmo-nos verdadeiros homens,

esse é o sentido da História.” (Jaspers)
.
Pulsa na esquerda
O eterno fanatismo
Feia
Gorda, velha e lerda
Enovelada na teia
Do seu próprio catecismo

Esquerda e direita
São irmãs da mesma seita
Gerada e criada
No goulag e no gueto
Onde a vida era pintada
A branco e preto

Mas hoje em dia
Senhores
De que serve a teoria
Se o mundo é a cores?

Ponte de Sor, 9/3/2001
A UM POETA

A Antero de Quental


“Surge et ambula!"
[*]

Recolheste-te no teu casulo
E aí ficaste
E não te transformaste
Prisioneiro de ti próprio
Tens na palavra a tua única companhia
Sem outro destinatário
Escreves em voz alta para te ouvires
E sentires que estás vivo
Mas efectivamente já não estás
Apodreces com as palavras
No canto do túmulo que te embala
A vida é partilha e combate
E o teu canto
Tem o cheiro impenetrável do sepulcro

Acorda!
Abre as janelas do teu quarto!
Areja as palavras
E sacode-lhes o pó!
(Já ninguém veste palavras
Com cheiro a mofo)
Vamos!
Incendeia a noite
Com a chama das tuas palavras!
Alumia-nos o caminho!

Faz com que a poesia volte a ser
De novo
Festa e conquista

Ponte de Sor, 10/4/1999


[*] «Levanta-te e anda!»
O CANALHA [*]

Eu sou a morte pontual
das crianças com fome
Eu sou a cura milagrosa
das cirroses dos alcoólicos
Eu sou o paraíso abortado

Habito nos escombros da Cidade em ruínas
Navego no mar do desespero
Percorro a pé as ruas do fracasso

Eu sou o comerciante mentiroso
O vigarista
Eu sou o peregrino preguiçoso
O parasita
Eu sou o amante da derrota
O masoquista

Descanso no patamar da loucura
Frequento os cafés da ilusão
Durmo com as prostitutas condenadas

Eu sou o criminoso nunca preso
Eu sou a gaiola do pássaro
Eu sou o pássaro

Passeio-me pelos becos dos discursos
Semeio as ervas daninhas
Nego a existência de Sião

Eu sou a noite sem estrelas
O vento cortante
O barco sem leme
Eu sou o náufrago

Prometo a Paz
Fomento a guerra
Iludo os parvos

Eu sou o mercenário sempre pronto
Eu sou a morte voluntária
Eu sou a bomba já lançada

Afogo-me nas águas poluídas
Alimento-me de carne virgem
Desfloro a utopia

Eu sou a corrente traiçoeira
A justiça cega
Eu sou a indiferença salvadora
Eu sou o crítico mordaz do criador

Eu sou
o HOMEM do século XX.

Coimbra, 11 de Janeiro de 1978


[*] Publicado in Revista CADERNOS DE LITERATURA, nº1, 1978
O COMETA

Rasga-se um peito num grito desesperado.
Involuntário.
De guerra.

Mas ninguém ouve.

No Castelo Assombrado
o medo impera.
Os Homens,
programados,
movimentam-se com gestos mecânicos.
Os Fantasmas governam.
É noite.
Uma noite escura.
Mortal.
Sem cérebro.

Mas não te cales, HOMEM LOUCO!
Grita! Continua a gritar!
As nossas vidas dependem da força do teu grito.
Por favor,
GRITA!
Grita mais! MAIS! MAIS! MAIS AINDA! MAAAIS! MAAAAAIIS!...

Coimbra, 22/1/1978
INTRODUÇÃO A UMA NOVA CAMINHADA

Vesti-me de leopardo
Para sobreviver na selva.
Todas as vezes que me despi
Fui acossado
Pelas outras feras.
E lá voltava eu a envergar o odiado
Camuflado
Dos rugidos e das esperas.
E lá continuava eu o meu caminho solitário
À procura dum amigo,
Duma clareira ou dum abrigo
Onde não fosse necessário
Ser fera.

Nunca encontrei.
Muitas vezes me enganei...
Confundido na miragem
Pelo cansaço da viagem.

Viseu, 1978
QUIMERAS [*]
.
Dormes
Entre lençóis de espuma
Em quimeras azuis
De um mar d' além

Sonho-te
Por entre as ondas brancas
Com algas de esperança
Nos cabelos

(Do cais parti tão cedo
Lendas de mar, amar e medo
E a noite
Que abarca
E embala a barca
Que nos prende
E surpreende
Aprende
Que o dia já vem)

Coimbra, 1978


[*] Letra da música com o mesmo nome composta por Shiro Iyanaga
MONÓLOGO DE UM CHAPARRO
.

Estiolo no redil dos dôtores
onde as intlegências dã flor e frutes
e onde há penedos e quintas p' alumiar amores
e promovê poetas.
.
Mas ê cá sô alentejano
e daí que na m’ aveze a estas cavlarias
de subir e descê ladêras,
onde há precisã de esperá p’la noiti
ô de dar um tiro na cornadura
pa s' ouvi falar a quietudi. 
.
Como pode um home,
Avezado a verter águas na trasêra dos sobrêros,
Afazê-se às lides da cidade apadralhada
Das capas e batinas? 
.
Nasci da charneca
(foi uma alentejana que me pariu)
e cresci como um chaparro.
Sem relógios.
Saltê p'à garupa do Tempo
e acostumê-me a sabê esperari. 
.
Mas aqui d’ assim, estes pacóvios
(espertos que nim sobro atascado em água)
na dã credo a isso.
Di e noite atrelados ós pontêros
que nim parelha à charrua!
Homes d’ uma figa,
conhecim melhor as horas c' o cã o dono! 
.
Ma n' é só isso que m' infada
Da capital do Bazófias. Antes fora!...
C’o qu' ê n’ atino,
Nim que m´afocinhim numa cama de tojes,
é c’os desrespêtos à Natureza,
minha senhora e minha mãe.
E atã na é que n’ há aqui filhe da puta
que na bote a boca acima da vista?
Eh! Homes dum corno,
Sã piores c' uma vaca a ruminá palha!
Inda s’ aquilo desse vazão alguma inquietação…
Ma não, só dá vazão às letras e a miolêra da genti.
.
E atã vá-se lá um home ingraçá duma cachopa!...
Já nim sê mêmo pa que Deus fez as fêmeas…
A fêtura dum só sempe dava menos trabalhos
e n’ alevantava desejos.
Se por casa da cobrição,
Os animais tamém tivessim precisã de benzeduras,
já há munto c'os bácros tinhim dêxado de comê landi. 
.
Mas estes fadistas letrados
Ô po munto lerim
ô po falta de descorrimento,
na têim a mêma ideia.
.
Mas ê cá continuo c’a minha crença
De que há-de chegar o dia em c' os homes aprendrão
Que na é o home que muda a Natureza,
mas a Natureza que se muda a ela mêmo,
pôs o home tamém é Natureza.
.
A-i-ô!
.
Coimbra, 14 de Janeiro de 1980

................................................................................................................

CANTO

Canto
como quem fala só no escuro
p'ra não tremer

E o canto
é muro
onde me escondo sem me ver

Coimbra, 1981
CASCAS DE NÓS

Afundou-se no Índico do Tempo
A lusa nau que outrora fez a história...
Mas navega ainda na memória
De quem fez da história passatempo.

Que importa ter um Dias ou um Gama
Se a chama não reclama a nossa vela?
Que importa já lutar, morrer por Ela,
Se no berço já não chora quem se ama?

Da cabeça do Mundo até aos pés
O corpo navegámos lés a lés.
Zangão que mais alto voou no mar,

Sem nunca se alarmar da altitude,
Povo velho a quem resta recordar
Histórias da sua juventude.

Viseu, 14/2/1981
PARTO

Parto

*****a viagem começa
*****na saída do túnel

*****a partida num grito

*****depois é a estrada
*****antes do trilho
*****um trilho feito estrada
*****pelas minhas mãos
*****(gastei as mãos naquela estrada...)

********************************parto

Courelas, 25/2/1982
LA FLAMME [*]

pendant que tu dors

je veille
ton sommeil
du sommet de ton corps

Courelas, 3/12/1982


[*] Publicado in Revista VÉRTICE, nº464/5, 1985
A CIGARRA E O SARDÃO[*]

I

Sou soldado
em terra alheia

Ergo com as pedras
que piso
o castelo do meu poder
Sou o rei
do teu destino
e escravo
do meu senhor

Tenho um hino
e uma bandeira
que ecoa
e que esvoaça
sobre os destroços da proa
dum navio abalroado

Trago nas mãos
esta sina
de crescer como a semente
enterrada
por intrusos
nas margens dum afluente

II

filho do sobreiro
e da charneca
trago no canto
o cheiro
do alecrim
*****se no campo
*****o morteiro
*****arde e peca
do canto
cresce o manto
que há em mim

e do grito
semeado
em cada palmo de chão
nasce o mito
dum soldado
brota a letra da canção:

«trovador e peregrino
na guerra sou figurante
exorcista militante
dos possessos do destino
»

III

Sou soldado
e sou poeta

abarco numa só mão
a cigarra e o sardão

Santa Margarida, Fevereiro 84


[*] Publicado in Revista CADERNOS DE LITERATURA, nº18, 1984
O FILHO DO HOMEM

Filho adoptivo de Deus,
Eu nasci do cruzamento
Entre a maçã e a serpente.
Da serpente fiz-me gente
E da semente
Os sonhos meus
Traídos por Caim
Na manhã do nascimento.

Nas margens da Razão,
Cresci assim...
Sem nunca ter molhado o pé
Nas frescas águas que são
O firme chão da minha fé.

Santa Margarida, Março 84
SENTI-NELA

Sentinela
Na guarita
Suspensa pela coronha
(Ou guitarra à bandoleira?)
Sonha
Com moça bonita
Debruçada da janela

Herdeira
Do sonho dela

Santa Margarida, Março 84
PEREGRINO

Passo a passo
Fui subindo a colina
Do fracasso
Cada verso foi um passo
Do Paço
Que me destina

Minha sina
Peregrina
De poeta está cumprida
Camões de um só braço
Do naufrágio salvo a vida

Santa Margarida, Março 84
AMAR

De mim és Rainha
Sem ser minha

Distante
No instante
Em que te abraço
Como um laço
Que se aperta
No vazio

Não viu
Essa seta certa
O destino que a seguiu
Do arco do teu olhar

Tenho sede e tu o mar
E só amar
Devora o espaço
Entre o teu corpo e o meu braço

Ponte de Sor, Janeiro 1995
DE VENEZA

“Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude de muito imaginar;” (Luís de Camões, sonetos)

Escrevo-te de Veneza

Na mesa
A caneta descansa
Sobre a folha branca
Do leito
Onde te deito

Minha mão
Sobre o teu peito
Feito
De saudade e solidão

Escrevo-te de Veneza
Amor

Na boca o calor
Da tua boca presa
E o sabor
Constante
Daquele voraz instante

Escrevo-te de Veneza
Amor

Com a certeza
Experimentada
Que no solar do sonhador
Pernoita a mulher amada

Veneza, 16/4/1995
ILHA

Pedra atirada
Do Céu
Para o meio da água

Mergulhada
Como eu
Na mesma mágoa

Funchal, 19/5/1995
A GENTE

A gente
Da minha cidade
É feita de barro encarnado
Mole, lasso, aderente
À sola de senhor presidente

A gente
Da minha cidade
Mente
Naturalmente
Traindo com o mesmo à vontade
Com que adula de frente

A gente da minha cidade
Arrasta o rosto p'lo chão
Vergada pela vaidade
Da sua estreita ambição

A gente da minha cidade
Não há-de
Morrer na guerra
Nem p'la Pátria, nem p'la terra

À gente da minha terra
Falta-lhe o granito da serra

Ponte de Sor, 5/1/1996
SIRENA

Sopra do mar
O fado
Do teu falar
Salgado

Molhado

Que me afaga,
Alarga, alonga, alaga,
As raízes sequiosas dos meus sentidos
Ressequidos

Renascidos

Ponte de Sor, Fev 1996
NA LUA

Nas nuas
Tuas
Duas
Meias-luas

Passo
E trespasso
E faço
O passo
Lasso
E largo o traço

Ponte de Sor, Março 1996
ALENTEJO

Triste sina
A desta terra
Indolente
Onde a semente
Que se enterra
Não cresce nem germina

Ponte de Sor, 26/5/1996
EPITÁFIO

Luís
D. Nuno, Bartolomeu
Gente do meu País
Sem idade
Tão efémera como eu
À luz da eternidade

Estocolmo, 19/8/1996
NO CABO DO ESQUECIMENTO

A Bartolomeu Dias

Naufragar aqui
Junto do rochedo
Onde enfrentei o Medo
E o venci

Minha glória é essa:
Morrer onde nasci

Regressar
Ninguém me peça
Este mar
É o meu Mosteiro
E a Pátria esqueceu depressa
Quem aqui chegou primeiro

Copenhaga, 24/8/1996
OS JUDEUS DO FIM DO SÉCULO

Somos o povo anónimo que trabalha
A maralha
Que estiola
E que se imola
Junto às portas da muralha

Somos o povo anónimo que trabalha

O soldado desconhecido
Caído
E esquecido
Sob os escombros da batalha

Somos o povo anónimo que trabalha

A canalha
Que luta
E que labuta
Sobre o frio cortante da navalha

Nós somos o povo anónimo que trabalha!

De todas as revoluções
A letra das canções
E a bandeira
E a sua vítima derradeira

Nós somos o povo anónimo que trabalha!

Gentalha
Que se agacha, esperando
Pela sorte que não volta,
Mas que, de vez em quando,
se revolta

Roma, 31/12/1996
D. NUNO

Ergue a tua espada
Jovem e fero
Cavaleiro
E salva a Pátria amada
Do jugo do Efémero
Rei estrangeiro

Solta o Fado
Prisioneiro
De um destino magoado
E traiçoeiro
Dá-lhe um génio indomável
Guerreiro
Santo Condestável
Padroeiro

Lisboa, 9/2/1997
CRUZADO

Se tens alma e coração
Então
No Dia do Juízo
Recusa o teu lugar
No Paraíso
E vai onde és preciso

Ao Inferno

Salvar
O teu irmão
Do fogo eterno

Quarteira, 29/3/1997
EL-REI D. JOÃO II

Trepa ao extremo
Do mastro do teu trono
Rei supremo
E meu senhor

E assombra o sono
De novo
Do teu povo
Com outro Adamastor

Toronto, 22/6/1997
A TORMENTA

Nau atracada
Ao cais
Do teu corpo

Fustigada
Pelas vagas fatais
Da enseada
Do porto

Constância, 12/8/1997
D. SEBASTIÃO

“E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.” (Luís de Camões, Lusíadas, Canto I)

Partir
Para Alcácer Quibir
Sem deixar descendente

Aqui apenas deixei
A gente fraca, descrente,
Mesquinha e indigente
De quem nunca serei
Rei

Os MELHORES
- Portadores de valores maiores
Do que a Vida -
Levei-os comigo
Gente segura
E destemida
Nascida da aventura
E do perigo

O MEU REINO É ESTA GENTE!

E se Deus
Não permitir
A vitória em Alcácer Quibir
Que o Rei sem descendente
Ali morra com os seus!

Malta/Sicília, 25 a 31/8/1997
SERTÓRIO

“Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!”
(Bocage, Sonetos)

Comandante
Quão semelhante
Acho teu fado
Ao meu

Entrincheirado
Também eu
Na cova da Solidão
Erro como soldado
Longe do chão
Sagrado
Onde enterrei o coração

Corunha, 31/12/1997
O MILAGRE DE POPIELUSZKO[*]

Aos homens da Igreja de que José Saramago nunca se lembra

“A nossa filiação divina traz nela a herança da Liberdade.”

(Pe Jerzy Popieluszko, homília de 19/10/84)

Invejo a tua sorte
Padre do “Solidariedade”:

Ser capaz
De transformar a própria morte
Servida por Satanás
No elixir da Liberdade
Que por ironia divina
Se espalhou pela mão cobarde
Da besta assassina

Como na lenda da cidade
[**]
A tua morte foi o espelho
Onde se matou o dragão vermelho

Varsóvia, 19/8/1998


[*] O Padre Popieluszko, conhecido por Padre do “Solidariedade” (sindicato), é o símbolo polaco das vítimas do comunismo. Defensor dos direitos humanos e dos trabalhadores na Polónia, foi torturado e assassinado na noite de 19/10/84 por três oficiais da Polícia secreta, vindo o seu funeral a transformar-se numa das maiores manifestações contra o regime comunista e o seu túmulo num lugar de peregrinação, o que precipitou a queda do regime.

[**] Conta uma lenda que, em Varsóvia, viveu um dragão que matava as pessoas com o olhar. Por ironia do destino, morreu vítima do seu próprio olhar, no dia em que se viu num espelho.
O PACTO

A Adolfo Hitler e José Estaline
Para que a sua memória nunca nos deixe descansar em paz

Conta-nos a História
Que dois canalhas sem rival
Escolheram a Polónia
Certo dia
Para comparar o mal
Que cada um fazia

Ambos se tomavam por Deus
E se o Adolfo tinha o fascínio
Pelo extermínio
Dos judeus
O José de má memória
Para alcançar a vitória
Chegava a matar os seus

Cracóvia, 22/8/1998
O GUETO DE BERLIM

Em memória de todos aqueles que, entre 13/8/61 e 9/11/89, foram assassinados, junto ao muro, por terem decidido ser livres.


“Ich bin ein Berliner”[*] (J. F. Kennedy, 26/6/63)

Em Berlim
Bem no centro da cidade
Foi um dia erguido um muro
Por gente malvada e ruim
Que em nome do Futuro
E por amor ao Homem Novo
Algemou a Liberdade
E sequestrou o próprio povo

Berlim, 27/8/1998


[*] «Eu sou um berlinense»
A MARTE

Beijar-te
É uma arte
Que aprendi
A olhar para ti

Sozinho
Sem nunca fazer alarde
Da paixão que sentia
Ia traçando o caminho
Que mais tarde
A minha boca percorria

Tocar-te
É também uma arte

Conheço de olhos fechados
Reconhecendo-lhes o sabor
Todos os centímetros sagrados
Do teu corpo meu amor

Mas amar-te
Não
Amar-te não é arte
Nem ilusão

Amar-te
É uma religião

Alentejo, 21/12/1998
AMOR DE PAI

“Vi como um danado” (Alberto Caeiro)

Vivo como um danado
E a ti o devo, Zé Leonardo

Esse
É o nosso segredo

Decidiste morrer cedo
Apenas para que eu aprendesse
A ver
E a viver
Cada instante da vida
Como uma despedida

Las Palmas, 29/12/1998
SAUDADE

Eu sei
Que também aqui
Tens estado
Porque vi
Quando cheguei
O teu corpo desenhado
Em todo o lado

Las Palmas, 3/1/1999
DE MADRUGADA

Espera por mim
Deitada
Na madrugada
De um caminho
Que cheire a alecrim
Ou rosmaninho

E aberta em flor
Impregnando os ares
Liberta amor
O teu odor
Para me chamares

Ponte de Sor, 8/4/1999
AGUA(R)ELA

No início, um ponto apenas
Perdido no meio do mar
Das longas noites amenas
Onde fixava o olhar

Depois, uma ilha deserta
Rasgada mesmo defronte
Da minha janela aberta
Ao apelo do horizonte

Por fim, um porto de abrigo
No meio do oceano
Que me guarda do perigo
Todos os dias do ano

Évora, 21/6/1999
O PROFETA

“A voz que clama no deserto.” (S. Mateus, III–3)

eu sou a voz
que perto
de vós
clama no deserto

a chama
que te chama
e desafia
do alto da penedia
a invernia

o grito
que perfura
o ventre da noite mais escura
e que perdura
na procura do infinito

mito
feito de tenacidade
e granito
encontrei a liberdade
na afronta destemida
às intempéries da vida

Ponte de Sor, 4/7/1999
VÉNUS

Deus fê-la
De luz e sentimento
E quis que fosse minha
A estrela
Que sozinha
Sustinha o firmamento

Urgeiriça, 13/7/1999
CASTIGO

«Amo-te em demasia»
Expressão
Que tantas vezes usei em vão
E que escondia
O vazio que em mim trazia

Mas Deus castigou-me
Como vês
Apaixonou-me por ti
E obrigou-me
A sentir desta vez
Por todas as vezes que menti

Ilha do Farol (Olhão), 12/8/1999
LIBERDADE

“O inferno são os outros” (Sartre)

Aparece-me todos os dias
Com todo o seu esplendor de loucura
E fantasias
Autêntica, pura
Imaculada
Entre as duas e as quatro da madrugada

Excepto (evidentemente)
Aos sábados, domingos e feriados
Dias em que, por haver demasiada gente,
Se recusa a aparecer por estes lados

Leipzig, 30/8/1999
MANIFESTO ANTI-DANTAS[*]

a Antero de Quental e Almada Negreiros

Hoje os Dantas e os Feliciano
São de esquerda e, tal como antigamente,
Arrotam à mesa do Presidente,
Obesos de saber palaciano.

Mas, se o Zé quis o Nobel no seu ano,
Para além de inquisidor sem ser crente
E comunista (evidentemente),
Teve de converter-se ao castelhano.

São assim os nossos int'lectuais:
Solidários com os “faminto e nu”,
Sem nunca os olharem como iguais,

Tratam o primeiro-ministro por tu,
Frequentam a corte e os telejornais,
São gente de esquerda e levam no cu.

Viseu, 25/12/1999


[*] Quando, em Dezembro de 1999, vi poetas (sobretudo, os poetas, porque de escritores, pintores e escultores a gente já espera tudo...) fazerem bichinha pirilau para o beija-mão presidencial... deu-me cá dentro uma revolta tão grande que, para apaziguar as entranhas, tive de rascunhar à pressa este Manifesto.
«OBVIAMENTE»

Procuro a alma gémea neste bar
Entre gente das artes e vivida
Procuro-a que a minha anda perdida
Vagueando pelas serras a penar

Embalo-me no meu canto a sonhar
Com princesa de história nunca lida
E divago, revolvo a minha vida
Enquanto os observo a conversar

Afinal que bar é este, senhores,
Que reúne entre a sua vasta gente
Poetas, escultores e pintores?

O seu nome é tão óbvio que não mente
E
fácil de fixar se tu lá fores.
Ninguém o adivinha? Obviamente.

Viseu, 28/12/1999
PRECE

A D. Afonso Henriques

Pai, olha-nos de frente
E devolve a esperança
A esta gente
Que ingloriamente
Desbaratou a tua herança

Amã, 23/7/2000
MARIA

Mulher, bendita sois vós
Entre todas as criaturas humanas
Cristãs, judaicas ou muçulmanas
Que, em nome dos deuses dos seus avós,
Vos controlam da nascente até à foz.

Mas, antes do Juízo Final,
Os crentes do mundo inteiro
Vão poder ver, se Deus quiser,
Que o único Deus verdadeiro
Afinal
Sois vós, Mulher.

Jerusalém, 28/7/2000
LUSOFONIA

«Ti amo» assim sussurrado
Por essa boca gostosa
Tem o sabor do pecado
Tem o perfume da rosa

«Amo-te» fica sem graça
Mas confesso-to ao ouvido
Que o som rude que o trespassa
Não lhe retira o sentido

Quarteira, 9/8/2000
EPÍLOGO

Muito antes da nossa era
A Morte subiu
O vale do lado do sol poente
E ficou à nossa espera
Na margem esquerda do rio

Como sempre

Luxor (Vale dos Reis), 10/4/2001