O CANALHA [*]

Eu sou a morte pontual
das crianças com fome
Eu sou a cura milagrosa
das cirroses dos alcoólicos
Eu sou o paraíso abortado

Habito nos escombros da Cidade em ruínas
Navego no mar do desespero
Percorro a pé as ruas do fracasso

Eu sou o comerciante mentiroso
O vigarista
Eu sou o peregrino preguiçoso
O parasita
Eu sou o amante da derrota
O masoquista

Descanso no patamar da loucura
Frequento os cafés da ilusão
Durmo com as prostitutas condenadas

Eu sou o criminoso nunca preso
Eu sou a gaiola do pássaro
Eu sou o pássaro

Passeio-me pelos becos dos discursos
Semeio as ervas daninhas
Nego a existência de Sião

Eu sou a noite sem estrelas
O vento cortante
O barco sem leme
Eu sou o náufrago

Prometo a Paz
Fomento a guerra
Iludo os parvos

Eu sou o mercenário sempre pronto
Eu sou a morte voluntária
Eu sou a bomba já lançada

Afogo-me nas águas poluídas
Alimento-me de carne virgem
Desfloro a utopia

Eu sou a corrente traiçoeira
A justiça cega
Eu sou a indiferença salvadora
Eu sou o crítico mordaz do criador

Eu sou
o HOMEM do século XX.

Coimbra, 11 de Janeiro de 1978


[*] Publicado in Revista CADERNOS DE LITERATURA, nº1, 1978